A reação ao fascismo começa a tomar corpo.
Faltou lugar para tanta e diversificada plateia. Advogados, juízes, desembargadores, servidores públicos, militantes sociais, políticos, jornalistas, intelectuais.
Que os fascistas perderam a modéstia, não há dúvida, como mostra o comportamento da ralé, no conceito de Hannah Arendt. Ralé é um grande resto, uma porção das mais diferentes classes sociais que tem em comum negar a política e a contradição como instâncias da vida social, por isso sua aversão a política e as práticas de equalização ou equilíbrio social e as diferentes instâncias da vida democrática; a ralé tem o ódio como missão e a violência como seus motores.
“I. PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO. — Na já vastíssima literatura referente ao Fascismo é normal depararmos com definições diversas e freqüentemente contraditórias deste conceito. A multiplicidade de definições é demonstrativa não só pela real complexidade do objeto estudado, como também pela pluralidade de enfoques, cada um dos quais acentua, de preferência, um ou outro traço considerado particularmente significativo para a descrição ou explicação do fenômeno. Preliminarmente podemos distinguir três usos ou significados principais do termo. O primeiro faz referência ao núcleo histórico original, constituído pelo Fascismo italiano em sua historicidade específica; o segundo está ligado à dimensão internacional que o Fascismo alcançou, quando o nacional-socialismo se consolidou na Alemanha com tais características ideológicas, tais critérios organizativos e finalidades políticas, que levou os contemporâneos a estabelecerem uma analogia essencial entre o Fascismo italiano e o que foi chamado de Fascismo alemão; o terceiro, enfim, estende o termo a todos os movimentos ou regimes que compartilham com aquele que foi definido como "Fascismo histórico", de um certo núcleo de características ideológicas e/ou critérios de organização e/ou finalidades políticas.
Nesta última acepção, o termo Fascismo assumiu contornos tão indefinidos, que se tornou difícil sua utilização com propósitos científicos. Por isso, vem-se acentuando cada vez mais a tendência de restringir seu uso apenas ao Fascismo histórico, cuja história se desenrola na Europa entre os anos 1919 e 1945 e que está essencial e especificamente representado no Fascismo italiano e no nacional-socialismo alemão.
Em geral, se entende por Fascismo um sistema autoritário de dominação que é caracterizado: pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa, hierarquicamente organizado; por uma ideologia fundada no culto do chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes, em oposição frontal ao socialismo e ao comunismo, dentro de um sistema de tipo corporativo; por objetivos de expansão imperialista, a alcançar em nome da luta das nações pobres contra as potências plutocráticas; pela mobilização das massas e pelo seu enquadramento em organizações tendentes a uma socialização política planificada, funcional ao regime; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação de massa; por um crescente dirigismo estatal no âmbito de uma economia que continua a ser, fundamentalmente, de tipo privado; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do Estado, de acordo com uma lógica totalitária, a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais.
II. "TEORIAS" SOBRE O FASCISMO. — Como todo evento histórico de relevância, o Fascismo despertou, desde a sua origem, um interesse que, excedendo as contingências da luta política, abrangia uma série de temas que eram fundamentais para a compreensão da sociedade contemporânea. Esse interesse foi a base de uma importante reflexão teórica sobre as causas e possíveis conseqüências dos regimes fascistas, articulada numa série de hipóteses interpretativas que, com o tempo, se foram aperfeiçoando e enriquecendo, quer devido à acumulação de material empírico, quer devido à adoção de novos quadros teóricos de referência. É a esta série de hipóteses interpretativas, mais ou menos sistematicamente correlacionadas, mais ou menos empiricamente comprovadas, que se alude geralmente ao falar de "teorias" sobre o Fascismo. E é neste sentido, bastante amplo, que usamos do termo neste contexto.
Há diversos critérios de classificação das teorias relativas ao Fascismo: o cronológico, o políticoideológico, o disciplinar e o sistemático — só para citar os mais usados — que podem ser diversamente combinados entre si, dando origem a tipologias mais ou menos complexas. A subdivisão aqui utilizada possui caráter introdutório e tem por objetivo chamar a atenção para as principais abordagens analíticas do fenômeno, desenvolvidas por estudiosos de várias tendências, a partir da década de 20.
Usando a terminologia empregada por E. Noite no seu famoso ensaio Theorien über den Faschismus, hoje já introduzida no léxico comum dos estudos sobre o assunto, as teorias sobre o Fascismo podem ser divididas em duas grandes categorias: em teorias singularizantes e teorias generalizantes.
Pertencem à primeira categoria as teorias que, para explicar a origem e sucesso dos movimentos e dos regimes fascistas, recorrem a fatores estreitamente ligados às particularidades de uma determinada realidade nacional e rejeitam toda a tentativa de generalização de um contexto histórico específico a outro. Segundo os defensores deste tipo de abordagem, as analogias verificáveis entre os movimentos e regimes comumente definidos como fascistas são de caráter formal, ao passo que as diferenças entre uma situação e outra são de tal modo relevantes que só admitem um discurso cientificamente fundado em cada um dos Fascismos. Conseqüentemente, o termo Fascismo se aplica corretamente ao movimento político que se impôs na Itália nos anos imediatamente posteriores à Primeira Guerra Mundial, e ao tipo de regime por ele instaurado após a tomada do poder; a outros movimentos ou regimes a eles ariamente assimiláveis, de acordo com os esquemas analíticos utilizados, só impropriamente se pode aplicar o termo de Fascismo.
Pertencem à segunda categoria as teorias que consideram o Fascismo como um fenômeno supranacional que apresentou, nas diversas formas de que historicamente se revestiu, características essencialmente análogas, resumíveis num conjunto de fatores homogêneos. Conforme os fatores considerados, assim são as definições e o campo de aplicação do conceito. As teorias generalizantes podem, por sua vez, subdividir-se em duas subcategorias, respectivamente definíveis como intrapolíticas e transpolíticas. As primeiras referem-se a fatores histórico-políticos determinados, historicamente individualizáveis; as segundas, a fatores a-históricos, inerentes à natureza humana, ao caráter repressivo da cultura, às características imanentes à luta política e por aí além.
A propensão para as teorias singularizantes ou generalizantes não pode ser atribuída, como muitas vezes acontece, à diversa orientação dos historiadores, por um lado, e à dos cientistas sociais, por outro. Na realidade, não faltam correntes historiográficas que, embora com a necessária articulação da pesquisa nos diversos níveis de cada uma das realidades nacionais, não só não Contradizem, como incluem até o recurso a uma teoria generalizante — pensemos, por exemplo, na historiografia marxista — e análises sociológicas que aceitam como principal fator explicativo do surgimento dos regimes fascistas a configuração específica das relações entre os sistemas social, político e cultural de um determinado país. A preferência por esta ou por aquela orientação parece determinada, antes de tudo, pela espécie de fatores que se julgam importantes para a descrição ou explicação do fenômeno e pelo nível da análise escolhida. Este último aspecto há de ser levado em conta, porque, como observou Gino Germani, a não distinção dos diferentes níveis de análise do fenômeno fascista tem dado origem a contrastes interpretativos mais aparentes que reais, já que baseados na contraposição de resultados válidos a diversos níveis de generalização. Na realidade, o Fascismo, como evento histórico concreto, engloba-se numa fenomenologia mais ampla, a do autoritarismo na sociedade moderna, apresentando-se como resultado de uma série assaz complexa de concatenações causais, umas remotas, outras mais próximas, investigadas em suas interrelações específicas. O problema principal para a construção de uma teoria do Fascismo está, pois, em identificar um nível de observação que permita colher a sua especificidade, sem renunciar àquelas conexões de caráter geral que fazem do Fascismo um fenômeno que mergulha suas raízes em alguns traços típicos da moderna sociedade industrial.
III. A ABORDAGEM SINGULARIZANTE. — A tendência a analisar o Fascismo como um produto particularmente característico da sociedade italiana e da sua história é contemporânea ao próprio nascimento do Fascismo. Conquanto minoritária no panorama global dos estudos sobre o tema, ela sustentou uma notável corrente da historiografia italiana e estrangeira, havendo recebido novo impulso em anos recentes, devido inclusive à influência de pesquisas como a de G. Mosse sobre As origens culturais do Terceiro Reich que, reavaliando a importância do componente nacional na compreensão de aspectos fundamentais do regime nazista, principalmente o do consenso, reativou a discussão acerca do peso relativo das diferenças e analogias existentes, em primeiro lugar, entre o fascismo e o nacional-socialismo e, depois, entre estes e os demais regimes autoritários que assinalaram a recente história contemporânea.
As primeiras hipóteses de explicação do Fascismo, com base em fatores internos típicos da situação italiana, foram aventadas, naturalmente, nos anos 20, em concomitância com a consolidação do movimento fascista, com a tomada do poder por Mussolini e com a progressiva transformação do Estado liberal em Estado de características totalitárias. Poucos souberam então ver no Fascismo a antecipação de uma crise mais geral que revolucionaria a Europa e, com a atástrofe da Segunda Guerra Mundial, viria a produzir profundas mudanças na organização interna de cada um dos Estados nacionais e na ordem internacional.
As causas imediatas da vitória do Fascismo foram geralmente procuradas no clima de forte instabilidade social, política e econômica, criado na Itália nos primeiros anos posteriores à Primeira Grande Guerra Mundial. Mas, ao tentarem explicar a vulnerabilidade e ruína das instituições liberais, alguns estudiosos se interrogaram sobre o passado da história nacional, chegando a descobrir no processo de formação do Estado unitário aquela debilidade intrínseca das estruturas que o Fascismo havia de pôr a nu. Foi assim que nasceu a bem conhecida tese do Fascismo como "revelação", subscrita por homens assaz diversos como G. Fortunato, C. Rosselli, P. Gobetti, G. Salvemini e outros. O atraso do país, a falta de uma autêntica revolução liberal, a incapacidade e mesquinhez das classes dirigentes, unidas à arrogância de uma pequena burguesia parasitária com a doença da retórica, a prática do transformismo, que havia impedido a evolução do sistema político num sentido moderno, foram o terreno de cultivo do Fascismo, que assim se situava numa linha de continuidade, muito mais que de ruptura, em relação ao sistema liberal.
Daí o juízo fundamentalmente redutivo do Fascismo e das suas potencialidades expansivas, só cultiváveis a partir do reconhecimento dos elementos de novidade nele presentes, quer nas técnicas de gestão do poder, quer no modo de organização do corpo social, e, de forma mais genérica, na configuração das relações entre Estado e sociedade civil. Por outras palavras, o que faltava aos defensores da tese do Fascismo como revelação era uma adequada percepção da natureza da crise que atingira o sistema liberal, e não só na Itália, no período compreendido entre as duas guerras mundiais, e do tipo de solução dada pelo Fascismo a esta crise. A afirmação do caráter tipicamente italiano do Fascismo, subscrita também, entre outros, por autorizados teóricos fascistas, que reivindicavam ser ele o coroamento do processo de unificação nacional iniciado com o Ressurgimento, foi questionada com o surgir de movimentos fascistas em vários países da Europa, mormente com a subida ao poder do nacional-socialismo na Alemanha. A partir dos anos 30, predominaram as interpretações tendentes a acentuar o caráter supranacional do Fascismo, que haviam de orientar a maior parte da pesquisa e alimentar o debate teórico mesmo depois da Segunda Guerra Mundial.
Em contradição com essa interpretação, foi-se esboçando nos últimos dez anos uma corrente historiográfica que visa reduzir o âmbito de aplicação do conceito de Fascismo apenas ao contexto italiano. Demonstrando a justa necessidade de se evitar as generalizações arbitrárias, mas expressando, ao mesmo tempo, uma orientação metodológica de desconfiança com relação ao uso de conceitos gerais na investigação histórica e de descrença nos modelos teóricos próprios das ciências sociais, essa corrente — que tem na Itália seu maior expoente em Renzo De Felice — originou uma série de pesquisas sobre o Fascismo, como movimento e como regime, com o objetivo, podíamos dizer, de compreender o fenômeno desde dentro (daí a utilização de fontes predominantemente fascistas) e de reconstruir a história, superando esquemas interpretativos preconstituídos. O resultado de tais pesquisas foi o de levar a uma reavaliação das diferenças existentes entre os diversos "Fascismos" e o de pôr em questão a utilidade de um modelo unitário.
Os argumentos aduzidos para apoiar esta nova versão da especificidade do Fascismo italiano são radicalmente diferentes dos que caracterizaram as primeiras análises dos estudiosos a ele contemporâneos. Estes baseavam o tema da especificidade num conjunto de variáveis estruturais, típicas da sociedade italiana, cuja permanência era aceita como principal fator explicativo do regime fascista, e ressaltavam a relação de continuidade com o sistema liberal que depois foi aceita como própria, de modo não fortuito, por grande parte da historiografia marxista ou próxima do marxismo. É uma perspectiva inteiramente diferente aquela em que se colocam as pesquisas atrás mencionadas. O centro da análise é o Fascismo em sua dimensão político-ideológica e a tese da especificidade é baseada, em primeira instância, justamente nas diferenças ideológicas e projetivas do Fascismo italiano com relação ao nazismo. Não se nega a existência de um denominador comum entre os dois fenômenos e, por conseguinte, a possibilidade de os englobar no mesmo conceito de Fascismo; mas esse denominador serve mais para estabelecer limites em relação ao exterior, isto é, em relação a outros regimes de tipo autoritário, do que para lhe explicar a natureza, os objetivos fundamentais e a função histórica. Estes, ao contrário, tornam-se divergentes, quando se contrapõe o radicalismo de esquerda e o caráter revolucionário do movimento fascista italiano ao radicalismo de direita, essencialmente reacionário, do nazismo.
O problema da relação com o sistema social e político preexistente também se fundamenta em bases diversas e se articula levada em conta a diferenciação entre Fascismo como movimento e Fascismo como regime. Como expressão das aspirações da classe média emergente, ou de uma parte consistente dela, a um papel político autônomo, tanto em confronto com a burguesia como com o proletariado, o Fascismo como movimento teria representado um momento de ruptura a respeito do passado, uma proposta de modernização das estruturas da sociedade italiana, com certa carga revolucionária. Ao invés, o Fascismo como regime, como resultado de um compromisso entre a ala moderada do movimento e as velhas classes dirigentes, teria assinalado a freagem do impulso eversivo original do movimento e o predomínio das relações tradicionais de poder entre as classes, mas nunca um momento de mera e simples reação. A delegação da gestão do poder político ao Fascismo por parte da burguesia marcou, de fato, o início de um processo de substituição da elite dirigente que, se não houvesse sido interrompido com a queda do regime em conseqüência das vicissitudes da guerra, teria podido desafiar os centros do poder real, até então controlados pelas velhas classes dominantes.
A reafirmação da "unicidade” do Fascismo italiano e da necessidade de ressaltar, para uma melhor compreensão histórica, os elementos de diferenciação dos regimes definidos como fascistas por interpretações já consolidadas, tem suscitado não poucas discussões. Esta polêmica tem por alvo não tanto a validade de cada uma das proposições — nenhuma delas em si totalmente nova — quanto uma questão fundamental, que é ao mesmo tempo a do método e a do conteúdo; o que se questiona é se é legítimo aceitar como principal critério discriminante a dimensão ideológico-cultural, se com isso se corre o risco de apresentar, como diversos, fenômenos que são essencialmente da mesma natureza.
IV. A ABORDAGEM GENERALIZANTE. — Que o Fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, malgrado as diferenças devidas às particularidades das respectivas histórias nacionais, hajam de ser considerados como especificações de um modelo de dominação essencialmente único, é coisa que tem sido sustentada pela maior parte dos estudiosos contemporâneos, independentemente das suas posições ideológicas e políticas. É a eles que se deve a elaboração de alguns esquemas interpretativos que muito têm contribuído para a orientação dos trabalhos dos historiadores e cientistas sociais da geração seguinte. As hipóteses explicativas que estes esquemas sugerem são diversas, quando não claramente alternativas, dependendo, em várias medidas, do tipo de fatores preferidos, do nível de análise em que se situam e da diversidade de paradigmas a que se referem. O que lhes é comum é o esforço por compreender as raízes do Fascismo e, de um modo mais geral, dos fenômenos autoritários evidenciados pela sociedade moderna, num conjunto de variáveis que transcendem os limites de cada uma das realidades nacionais.
Pelo peso diverso que exercem no panorama global dos estudos sobre o Fascismo e pela contribuição que trouxeram ao conhecimento deste fenômeno em sua dimensão histórica concreta, evocaremos aqui as interpretações que, embora em diferente medida, permitem traduzir as hipóteses genéricas nelas contidas em assunto de pesquisa susceptível de verificação empírica. Não consideraremos, porém, as contribuições que, situando-se no terreno filosófico ou da filosofia da história, constituem um capítulo importante da história das idéias do nosso século, mas
fogem a toda a possibilidade de controle exercido mediante o recurso a categorias historicamente determinadas.
a) O Fascismo como uma ditadura aberta da burguesia. — Entre os primeiros que captaram a dimensão internacional do Fascismo e as suas potencialidades expansivas, estão os expoentes do movimento operário em suas diversas articulações. O elemento unificador das várias formas de reação na Europa, no período que medeia entre as duas guerras mundiais, está na análise das contradições da sociedade capitalista e das modificações por ela introduzidas na dinâmica das relações e conflitos entre as classes, na fase histórica iniciada com a Primeira Guerra Mundial.
Dentro desta interpretação, é conveniente distinguir a formulação "clássica" — resumível nas teses elaboradas pela Terceira Internacional comunista a partir de meados dos anos 30 — dos seus ulteriores desenvolvimentos, que reassumem temas e idéias já presentes no debate iniciado pelos componentes do marxismo europeu desde a tomada do poder pelo Fascismo na Itália, reelaborando-os em função de uma análise menos esquemática das relações entre estrutura e supra-estrutura, entre esfera econômica e esfera política.
Na primeira formulação, as origens do Fascismo como fenômeno internacional são relacionadas com a crise histórica do capitalismo em seu estádio final, o do imperialismo, e com a necessidade que a burguesia tem, em face do agravamento das crises econômicas e da exacerbação do conflito de classes, de manter o seu domínio, intensificando a exploração das classes subalternas e, em primeiro lugar, da classe operária. O imperialismo envolve a tendência a transformar em sentido reacionário as instituições da burguesia, e o Fascismo é a expressão mais coerente dessa tendência. Ele constitui uma das formas do Estado capitalista, precisamente a caracterizada pela ditadura aberta da burguesia, exercida já sem a mediação das instituições da democracia parlamentar. A Itália e a Alemanha, como elos mais fracos da cadeia imperialista, foram as primeiras a experimentar esta forma de dominação, mas essa mesma ameaça impende sobre os demais Estados capitalistas.
São dois os elementos centrais deste tipo de análise: a concepção instrumental dos partidos e dos regimes fascistas, considerados como expressão direta dos interesses do grande capital, e a sua função essencialmente contra-revolucionária no duplo sentido de ataque frontal contra as organizações do proletariado e de esforço por frear o curso do desenvolvimento histórico. Em conseqüência, é dado pouco relevo ao fato, qualitativamente novo em relação às formas precedentes de reação, de que a fascista operasse mediante um partido de massa de base predominantemente pequeno-burguesa, embora comunistas italianos e alemães, como P. Togliatti ou Clara Zetkui, já houvessem chamado a atenção para isso. Além disso, eram ategoricamente rejeitadas, sob pretexto de ignorarem a definição do Fascismo como ditadura da burguesia, as análises que em vários setores do movimento operário vinham sendo feitas do Fascismo como forma de "bonapartismo", isto é, como regime caracterizado pela cessão temporária do poder político a uma terceira torça e por uma relativa autonomia do executivo em relação às classes dominantes, tornadas possíveis graças a uma situação de equilíbrio entre as principais forças de classe em ação.
A teoria do Fascismo como ditadura da burguesia constitui ainda hoje a chave interpretativa predominante nos estudos que têm como modelo de referência o marxismo e a sua concepção da mudança histórica. Com o tempo, porém, ela passou por uma certa revisão que tornou mais problemáticos alguns nexos, particularmente os existentes entre burguesia e Fascismo, entre movimentos e regimes fascistas, entre capitalismo, democracia e Fascismo. Esta revisão é o resultado de uma reflexão teórica que teve efeitos importantes em vários sentidos. O primeiro deles foi a atenuação do economicismo presente nas primeiras formulações e o reconhecimento de uma relativa autonomia da esfera política com relação à esfera da economia. Isso trouxe consigo uma mais aprofundada análise das crises de onde emergiram os regimes fascistas; uma articulação mais complexa da relação entre Fascismo e classes sociais; uma consideração mais atenta dos aspectos institucionais dos regimes fascista», da lógica do seu funcionamento, das bases da sua legitimação. Mas não modificou a concepção do Fascismo como forma particular de ditadura da burguesia, embora esta fosse atenuada pelo reconhecimento da autonomia relativa dos Estados fascistas em face do grande capital, no âmbito de uma convergência comum para objetivos imperialistas.
b) O Fascismo como totalitarismo. — É totalmente outra a perspectiva em que se situa a análise do Fascismo como totalitarismo, cuja contribuição principal foi a de ter sabido captar a novidade que representa o aparecimento dos regimes fascistas na cena política e a de ter chamado a atenção para as diferenças qualitativas existentes entre as formas tradicionais de autoritarismo e as modernas.
O quadro de referência é constituído, direta ou indiretamente, pelas teorias da sociedade de massa; à dinâmica das relações entre as classes sucede, como principal fator explicativo do surgimento dos fenômenos do autoritarismo moderno, a dinâmica das relações entre as massas e as elites num contexto caracterizado pela decomposição do tecido social tradicional, pelo desabe dos sistemas de valores comuns, pela atomização e massificação dos indivíduos, e por uma crescente burocratização. O aspecto central desta teoria, e ao mesmo tempo o mais criticado, é a subsunção sob uma mesma categoria, a do Estado totalitário, dos regimes fascistas e comunistas, com base em analogias existentes na estrutura e técnicas de gestão do poder político. São.
com efeito, estas analogias — verificáveis independentemente dos fins declarados que se tem em vista dos precedentes históricos e do conteúdo das respectivas ideologias — que os teóricos do totalitarismo privilegiam no plano descritivo e admitem como problema principal no plano explicativo.
Os elementos que definem o Estado totalitário são, em termos típico-ideais, conforme a formulação de Friedrich e Brzezinski: uma ideologia oficial tendente a cobrir todo o âmbito da existência humana e à qual se supõe aderirem todos, pelo menos passivamente; um partido de massa único, tipicamente conduzido por um só homem; um sistema de controle policial
baseado no terror; o monopólio quase completo dos meios de comunicação de massa; o monopólio quase completo do aparelho bélico; e, enfim, o controle centralizado da economia. O alvo é o de conseguir o controle total de toda a organização social, a serviço de um movimento ideologicamente caracterizado.
As condições essenciais para a sua aparição são um regime de democracia de massa e o poder dispor de um aparelho tecnológico como o que só a moderna sociedade industrial pode oferecer. O Estado totalitário se apresenta, portanto, como uma forma de domínio inteiramente nova, não só com respeito aos sistemas de democracia liberal, mas também às formas anteriores de ditadura e autocracia, uma vez que no passado não existiam os pressupostos para a sua realização. Possui, além disso, um caráter eversivo com relação ao sistema social preexistente, na medida em que lhe modifica radicalmente a estrutura, que se baseava na existência de uma pluralidade de grupos e de organizações autônomas.
As razões do sucesso dos regimes totalitários são geralmente postas no declínio do sistema liberal burguês e, especialmente, na dissolução do sistema classista, que é ao mesmo tempo causa e condição da sua sobrevivência. Mas o que mais interessa aos defensores da teoria clássica do totalitarismo são os mecanismos de funcionamento do Estado totalitário no âmbito de uma morfologia mais geral dos sistemas políticos. Numa tal perspectiva, as diferenças existentes entre os regimes fascistas e comunistas, bem como as verificáveis no interior de cada um deles, conquanto não negadas, perdem importância: uns e outros, na medida em que apresentam essa particular combinação de elementos que definem o Estado totalitário, pertencem à mesma classe de fenômenos e expressam a feição que assume o autoritarismo na sociedade moderna.
A teoria clássica do totalitarismo tem estado sujeita a numerosas críticas que têm por alvo uma dupla série de problemas. O primeiro diz respeito ao campo específico da análise dos regimes fascistas. Sob este ponto de vista, parece boje dificilmente sustentável a hipótese de que a origem e sucesso dos movimentos fascistas estariam relacionados com o conjunto de
fenômenos compreendidos no conceito de "sociedade de massa". Pesquisas recentes demonstraram que, nos países onde o Fascismo se consolidou, o sistema de estratificação era muito mais rígido, o peso das estruturas tradicionais muito mais forte e o grau de "atomização" — no sentido de falta de estruturas associativas intermediárias — muito menor que em outros onde o Fascismo jamais se ofereceu como alternativa concreta. A tentativa de explicar o processo de introdução do Fascismo com base na dinâmica das relações entre massas privadas de uma clara conotação de classe também contradiz um dado empírico já seguro, ou seja, a base constituída de massas predominantemente pequeno-burguesas dos movimentos fascistas e sua coligação com amplos setores da burguesia agrária e industrial, antes e depois da tomada do poder. Finalmente, esta teoria não consegue fornecer uma explicação aceitável sobre o problema da função histórica dos regimes fascistas, oscilando entre uma resposta de tipo não racional — os regimes totalitários seriam neste caso uma espécie de experimento monstruoso de engenharia social, tendo como fim a criação de um novo tipo de homemmáquina totalmente heterodirigido — e a renúncia explícita ao momento explicativo em favor de uma morfologia dos sistemas totalitários.
A segunda série de problemas diz respeito à própria utilidade do conceito de totalitarismo que, como instrumento, não permite discriminar entre regimes que, apresentando analogias no funcionamento do sistema político, diferem em outros aspectos importantes como os relativos à constelação das forças que favoreceram o seu triunfo, à relação entre as velhas e as novas elites, ao tipo de interferência na estrutura econômico-social e às suas conseqüências. Os que pensam que tal conceito ainda conserva uma certa valia no plano descritivo têm afirmado constantemente a necessidade de uma mais ampla tipologia dos sistemas totalitários, baseada na análise comparada dos diversos regimes, capaz de levar em conta as diferenças. É daí que surgiu a tendência de compreender dentro do mesmo tipo o Fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, com base nas analogias observáveis não só nas técnicas de gestão do poder político, como também na ideologia, na base social e na função histórica dos dois regimes.
c) O Fascismo como via para a modernização. — Nestes últimos tempos, tem-se desenvolvido um novo tipo de abordagem que tem como referência o esquema teórico da modernização e considera os regimes fascistas como uma das formas político institucionais através das quais se operou historicamente a transição de uma sociedade agrária de tipo tradicional à
moderna sociedade industrial.
As análises que antecedem — se excetuarmos a tentativa de explicar a implantação do Fascismo na Itália baseada no atraso geral da sociedade italiana — possuem um aspecto comum que é o de situarem os regimes fascistas num contexto caracterizado, em seu conjunto, por uma situação de avançada industrialização. A dinâmica existente entre massas e elites, o conflito entre a grande burguesia e o proletariado no estádio imperialista do capitalismo, assim como a revolta das classes médias emergentes, são indicadores de um tipo de sociedade que já passou total ou parcialmente à modernidade. Até os fenômenos de natureza mais estritamente política, que são relacionados com o surgir dos movimentos e regimes fascistas, são típicos de um sistema democrático plenamente consolidado, seja que se acentuem as suas contradições internas, como pretende a análise marxista, seja que se descubra nele o terreno específico onde tais movimentos podem nascer e desenvolver-se, como quer a teoria do totalitarismo.
A análise do Fascismo à luz das teorias da modernização coloca-o, ao invés, não já em relação com os conflitos e crises próprios da sociedade industrial, mas com os conflitos e crises característicos da fase de transição para ela. Neste quadro, os regimes fascistas se configuram como uma das vias para a modernização — as outras historicamente identificadas são a liberal-burguesa e a comunista — fundada no compromisso entre o setor moderno e o tradicional. Os traços que os caracterizam são, na esfera econômica, uma industrialização atrasada, mas intensa, promovida desde cima, com notável interferência do Estado a favor da acumulação; na esfera política, o desenvolvimento de regimes autoritários e repressivos, expressão da coligação
conservadora das elites agrárias e industriais que querem avançar pelo caminho da modernização econômica, defendendo, ao mesmo tempo, as estruturas sociais tradicionais; na esfera social, a tentativa de evitar a desagregação dessas estruturas, impedindo ou reprimindo os processos de mobilização social postos em movimento pela industrialização.
O conceito de mobilização social adquire particular relevância quando o Fascismo é considerado como um tipo especial de resposta aos conflitos nascidos da exigência de participação no gozo de determinados bens e serviços — materiais e não materiais — por parte de setores da população antes excluídos: uma resposta baseada na desmobilização forçada dos grupos recentemente mobilizados, posta em obra pela coalizão entre as velhas e as novas elites, em função da conservação da ordem sócio-política tradicional.
Os fatores que constituem a base da solução de tipo fascista hão de ser buscados nas modalidades assumidas pelo processo de modernização nos países onde tal processo se impôs.
Nesta perspectiva, a pesquisa tem contribuído para enriquecer a análise dos fenômenos fascistas em mais de um sentido. Chamando a atenção para a variedade de formas que o Fascismo pode assumir nos diferentes contextos nacionais, ela veio favorecer o desenvolvimento da abordagem histórico-comparativa, lançando as premissas para a formulação de generalizações empíricas, fundadas na pesquisa sistemática e orientadas à luz de categorias homogêneas. O conceito de modernização como processo global de transformação, que atinge todas as esferas do sistema social, tem orientado, além disso, a pesquisa para a análise das interações entre o sistema político, o sistema econômico e o sistema sócio-cultural, fazendo ressaltar as fraturas, sincronias e descontinuidades que melhor parecem caracterizar as situações de onde emergem os fenômenos fascistas.
A mais sólida contribuição deste tipo de abordagem está no plano das indicações metodológicas e, no plano substantivo, no aprofundamento das precondições do Fascismo, enquanto parecem bastante mais problemáticas as ligações entre ambas as coisas.
Em especial, a análise do Fascismo dentro da dinâmica dos processos de modernização parece oferecer melhores resultados na explicação da vulnerabilidade dos sistemas liberais burgueses, nos países onde ele se consolidou, do que na explicação do modo como caíram e do tipo de regime que se seguiu. Acentuando o peso do componente tradicional, ela tende a subestimar a importância do embate entre burguesia e proletariado, o papel das classes médias, a crise do sistema liberal e das suas instituições representativas, todos eles fenômenos que parecem ligados às tensões originadas no contexto de uma sociedade que apresenta, em seus traços essenciais, as características de uma sociedade industrial moderna. Essa mesma ótica impede, além disso, colher a especificidade dos regimes fascistas e os elementos de novidade neles existentes, bem como diferenciá-los de outras formas de regimes reacionários, conservadores ou autoritários.
d) O Fascismo como revolta da pequena burguesia. — Em contraste com as interpretações precedentes, cada uma delas enquadrada numa perspectiva teórica bem definida a cuja luz se elaboraram hipóteses relativamente homogêneas acerca da natureza e função dos regimes fascistas, as análises, que têm posto em evidência a ligação entre a pequena burguesia e o Fascismo, jamais alcançaram uma autonomia que as impusesse como alternativa interpretativa global. Não obstante, são mencionadas, quer pela contribuição específica que trouxeram ao conhecimento de aspectos decisivos para a compreensão do fenômeno, quer pela função de estímulo que exercem com relação a esquemas teóricos demasiado simplificados.
O fato de que a pequena burguesia pudesse contribuir de modo determinante para o sucesso dos movimentos fascistas, fornecendo-lhes os quadros e as bases de massa na fase de ascensão e um consenso ativo na fase de regime, não entrava nos esquemas clássicos, nem nos da teoria liberal, nem nos do marxismo. Para a teoria liberal, a pequena burguesia constituía um dos pressupostos do sistema democrático e a garantia de um desenvolvimento pacífico e gradualmente progressivo da sociedade; para o marxismo, ela estava impossibilitada de exercer um papel político autônomo em virtude da sua colocação dentro da estrutura de classes e da sua posição subalterna no respeitante ao conflito fundamental entre a grande burguesia e o proletariado. Em coerência com tais esquemas, a contribuição da pequena burguesia para o triunfo dos movimentos fascistas ou é negada, como na teoria do totalitarismo, em benefício da relação entre as massas não diferenciadas e as elites, ou então concebida em termos instrumentais, sendo atribuída à pequena burguesia a função de massa de manobra de um movimento a serviço dos desígnios do grande capital, como acontece na teoria do Fascismo como ditadura da burguesia.
A capacidade de mobilizar a pequena burguesia, baseando-se numa ideologia composta onde confluíam o irracionalismo e o voluntarismo, o anticapitalismo e o anti-socialismo, vagas aspirações a uma democracia radical unidas a acentos fortemente nacionalistas, parece, contudo, ser um dos elementos característicos do movimento fascista, desde a implantação do
Fascismo na Itália.
Este fato é analisado por alguns observadores como revolta da pequena burguesia urbana e rural, ameaçada em seu status pelos processos de transformação sócioeconômica em marcha, particularmente pelos processos de concentração industrial e pelo conseqüente aumento da influência da grande burguesia e do proletariado industrial na cena política.
Estendendo-se à pequena burguesia, o esquema da luta de classes fornecia-lhe o critério interpretativo do movimento, considerado revolucionário em suas premissas subjetivas mas reacionário no conteúdo objetivo, sendo como era expressão de estratos postos à margem pelo desenvolvimento produtivo e pela evolução da sociedade capitalista.
Na década de 30, após o sucesso do nazismo na Alemanha, o fascínio exercido pelos movimentos fascistas sobre a pequena burguesia tornou-se objeto de uma pesquisa que tendia a completar a explicação sócio-econômica com a análise psicossocial.
As interrogações a que a abordagem psicossocial queria dar uma resposta eram deste tipo: por que é que a pequena burguesia, mais que qualquer outra classe, tinha aderido ao Fascismo de onde não podia provir nenhuma solução para a sua situação de crise?
Que elementos da ideologia fascista tinham exercido sobre ela uma atração capaz de se tornar mais eficaz que qualquer consideração em termos racionais sobre a finalidade e objetivos do movimento fascista? Tais elementos tinham alguma relação com a posição da pequena burguesia como classe dentro da estrutura da sociedade capitalista e com as modificações pelas quais esta estava passando? Não existindo uma relação de correspondência imediata entre situação e ação de classe, mas sendo esta mediada pela percepção subjetiva daquela, que aspectos do sistema social podem explicar o comportamento da pequena burguesia e, mais genericamente, a disposição de indivíduos, grupos e classes sociais a submeterem-se a relações de tipo autoritário?
As contribuições de maior relevo orientam-se em dois sentidos. Estudaram, por um lado, mais profundamente as características da ideologia fascista, particularmente as da versão alemã, e a sua capacidade de canalizar o ressentimento da pequena burguesia para objetivos fictícios, a troco, as mais das vezes, de satisfações simbólicas. Distinguiram, por outro lado, um nível de análise intermediário entre situação e ação de classe, como o da personalidade, inferindo a importância das estruturas de socialização — principalmente da família — como sede de formação e de reprodução de estruturas psíquicas consentâneas com a ideologia das classes ou elites dominantes.
Que a relação entre a pequena burguesia e o Fascismo constitua um dos pontos essenciais para a compreensão da natureza dos regimes fascistas demonstra-o o constante interesse que ela desperta, bem como as numerosas pesquisas empíricas que continuam a apresentar-se sobre o assunto. Mas é um ponto ainda sem solução, principalmente no que respeita à função, dirigente ou subalterna, da pequena burguesia dentro do sistema de poder fascista.
Enquanto parece hoje já bastante provado e debatido o papel que ela desempenhou como base de massa dos movimentos fascistas, apresenta-se ainda como problemática a tentativa de mostrar o Fascismo, enquanto regime, como expressão da pequena burguesia no poder. Os estudos orientados neste sentido, embora tenham demonstrado o crescimento quantitativo dos estratos pequeno-burgueses — em virtude da expansão do papel do Estado, das suas funções político-administrativas, do aparelho de propaganda e de repressão —, embora tenham demonstrado também o restabelecimento das distâncias sociais em relação à classe operária e uma certa mudança nos quadros dirigentes nos vários níveis da burocracia política e administrativa, não conseguiram, contudo, demonstrar, de modo convincente, que as opções fundamentais dos regimes fascistas respondessem a uma lógica oposta aos interesses das antigas classes dominantes nem que pudessem ser referidas a um projeto de transformação social dotado de uma autonomia própria e tendente a conferir à pequena burguesia, antiga ou nova, um papel hegemônico no seio da sociedade.
V. PROBLEMAS ABERTOS. — A variedade de interpretações elaboradas com o correr dos anos sugere uma idéia do Fascismo como fenômeno de muitas faces, de que cada uma delas capta apenas um aspecto parcial e de que jamais se consegue construir o todo. Esta imagem parece dar razão aos que pensam que se deve abandonar o caminho já demasiado trilhado da busca de modelos explicativos de caráter geral e defender a reconstrução histórica dos diversos Fascismos, entretanto considerada pretensiosa e sem valor, já que prescinde de toda a tentativa de formular um juízo global sobre a natureza e função dos regimes fascistas.
Não é este o lugar apropriado para afrontar os problemas de método que uma escolha deste tipo suscita. Nem tampouco para assentar se a reconstrução histórica, privada de hipóteses interpretativas e guiada pelo único critério de "deixar falar os fatos", é possível e até mesmo desejável. Na realidade, na origem da rejeição de modelos interpretativos sólidos, como a que se faz com base num apelo aos fatos, está quase sempre a opção, explícita ou não, a favor de um modelo diferente, a cuja luz se hão de selecionar e interpretar os fatos.
Ora, a dificuldade em resolver alguns pontos fundamentais para a compreensão dos regimes fascistas deriva, em parte, da diversidade dos modelos de referência, mas também da confusão os níveis de análise e da insuficiência de empenho numa estratégia de pesquisa que tenda a traduzir as hipóteses genéricas em interrogações suscetíveis de verificação empírica.
Um exame das diversas interpretações e da sua evolução no tempo permite, no entanto, descobrir uma série de temas em torno dos quais se têm ido encurtando as distâncias, quer em conseqüência da acumulação de dados históricos sobre os sistemas investigados, quer por uma maior disponibilidade dos estudiosos de diversas tendências de proceder à verificação dos próprios resultados em confronto com os resultados alheios.
Verificou-se particularmente uma notável convergência na análise tanto das condições da aparição dos regimes fascistas como da forma político-institucional sob a qual se manifestou a sua dominação. Isso levou a um uso mais crítico do termo, cujo âmbito de aplicação se tem ido restringindo cada vez mais aos casos italiano e alemão.
Em vez disso, se mantêm assaz distantes as apreciações sobre a natureza e função dos regimes fascistas. Um dos discriminadores fundamentais continua sendo a relação entre capitalismo e Fascismo. É um problema ainda não resolvido se o Fascismo representou um tipo particular de solução para as crises de transformação do sistema capitalista ao longo de uma linha de identidade estrutural ou o início de um processo de modificação das estruturas do capitalismo tendente a criar um ordenamento econômico e social diverso tanto do capitalismo quanto do socialismo. A solução deste problema tornou-se ainda mais difícil pelo fato de que a duração relativamente breve dos regimes fascistas e a sua queda em virtude dos acontecimentos bélicos só permite falar de linhas ou tendências.
A questão gira em torno da relação entre política e economia e do maior ou menor grau de autonomia alcançado pelos Estados fascistas em face das forças economicamente dominantes, em especial do grande capital industrial e financeiro. Existem a tal respeito duas correntes principais de pesquisa que se movem em direções divergentes: a primeira propensa a demonstrar a convergência de interesses entre o Fascismo e o grande capital, para confirmar a tese de uma continuidade estrutural entre capitalismo e Fascismo, segundo a qual a autonomia relativa do poder político se explica dentro de uma coincidência substancial de objetivos e fins com o poder econômico; o segundo, ao contrário, tendente a apresentar tal convergência como resultado de situações contingentes, nunca capazes de contestar a divergência fundamental entre a ideologia e prática dos movimentos e regimes fascistas e as condições de sobrevivência do sistema capitalista. Sob este aspecto, as pesquisas efetuadas por ambas as vertentes não parecem haver modificado os termos do problema no que respeita ao debate suscitado no início da década de 40, até mesmo no seio do marxismo, entre os defensores, como Hilferding, de uma incompatibilidade essencial entre a lógica dos sistemas totalitários e a lógica do capitalismo, e aqueles que, como Franz Neumann, pensavam ser a forma totalitária a mais adequada em relação aos objetivos imperialistas do capitalismo monopólico. Foi-se, portanto, delineando a necessidade
de passar de um tipo de argumentação intencionalmente conduzida em termos de objetivos a outra fundada na análise concreta das mudanças ocorridas nas estruturas das sociedades fascistas, como resultado das estratégias umas vezes convergentes, outras vezes conflitantes, das múltiplas forças em ação.
Deste trabalho de aprofundamento realizado em vários sentidos surgirá uma imagem dos sistemas fascistas bem mais complexa e contraditória do que parecia no passado. Esta complexidade, este caráter contraditório parecem ligados ao fato de que eles constituem um exemplo de solução para os conflitos nascidos na sociedade industrial, baseado na utilização de técnicas políticas profundamente inovadoras, cujas implicações não foram ainda totalmente esclarecidas.
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