Aos que defendem a prisão como método para se obter uma confissão, confesso: “preso, não sei o que diria se com isso voltasse à liberdade”. Pensem nisso: quem, uma vez preso, não diria o que lhe devolveria a liberdade?! O dilema reintroduzido pela Operação Lava Jata não é novo. Será a verdade um valor absoluto ou a mentira cabe em determinadas circunstâncias. Dele já se ocuparam Rousseau e Kant. “Se um ladrão me perguntar se tenho dinheiro, não preciso dizer que sim.” Depois de Rousseau, outro francês, Constant atentou que “não basta o princípio de dizer a verdade. É preciso ainda determinar quem tem direito à verdade”.
Devemos atentar se a verdade interessa ao esclarecimento do fato ou é um meio por meio da qual se atinge determinado fim. Uma velha máxima ajuda a entender: os meios justificam os fins. Se a prisão (meio) para se chegar a confissão (fim) é lítica, porque fazer acordos entre empresas – Cartel (meio) para ganhar a licitação (fim) não o seria?!
MIGUEL REALE JÚNIOR
A prisão como pressão
Transformar a prisão, sem culpa reconhecida na sentença, em instrumento para forçar a delação é uma proposta que repugna ao Estado de Direito
Em artigo publicado em Tendências/Debates ("A ética do crime do colarinho-branco", 3/12), dois procuradores da República defenderam o instituto da delação –ou colaboração– premiada por visar à punição dos culpados e ao ressarcimento dos danos, mas também por interessar à própria defesa na tentativa de minimizar as consequências do processo.
Dizem, então, os procuradores da República que a legitimação da delação está na obediência do devido processo legal, ou seja, no respeito aos ditames legais, a todas as garantias de um processo regular e justo.
Em parecer ofertado em dois habeas corpus, interpostos por presos na Operação Lava Jato, o ilustre procurador Manoel Pastana defendeu a manutenção da prisão preventiva. O procurador a defendeu por entender que a segregação cautelar tem a importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, havendo a possibilidade de os influenciar na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade.
A prisão antes da sentença condenatória, todavia, é medida excepcional, cabível apenas em vista do interesse de preservação da prova, da considerável probabilidade de reiteração delituosa ou de fuga do investigado. Só é de se admitir a prisão preventiva quando a liberdade do investigado constitua um perigo para o processo, um risco para a apuração dos fatos e para a garantia de aplicação futura da lei penal.
Transformar a prisão, sem culpa reconhecida na sentença, em instrumento de constrangimento para forçar a delação é uma proposta que repugna ao Estado de Direito: ou o acusado confessa e entrega seus cúmplices, ou permanece preso à espera do julgamento, com a possibilidade de condenação, mas passível de uma grande redução da pena se colaborar com as investigações.
Evidentemente, não se compadece como o regime democrático que o Estado valha-se do uso da violência para extrair confissões.
Em manifesto à nação, o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) asseverou, na terça-feira (2), "ser inadmissível que prisões provisórias se justifiquem para forçar a confissão de acusados", sendo imprescindível o respeito ao devido processo legal e à presunção de inocência.
Além do aspecto moralmente negativo e da afronta à integridade psíquica e física do investigado, essa finalidade outorgada à segregação cautelar desrespeita o devido processo legal, exigência posta tanto pelos procuradores da República como pela OAB. Com efeito, no artigo 4º da Lei de Organização Criminosa se estabelece que na delação o indiciado deve ter colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal.
Assim, é condição da delação a voluntariedade, sendo a prisão, como meio de pressão para confessar, o inverso da exigência de ser voluntária a delação, pois só há voluntariedade quando não se é coagido moral ou fisicamente.
A delação há de ser voluntária, pouco importando se os motivos determinantes consistem em efetivo arrependimento face aos delitos cometidos ou em interesse desonesto, como o de Silvério dos Reis que delatou a Inconfidência Mineira em troca do perdão das dívidas fiscais e do recebimento de honrarias.
A delação pode ser de interesse da defesa, mas deve, antes de tudo, ser voluntária. Isso não sucede com a que é conquistada por via da imposição de uma prisão injusta e desnecessária se ditada apenas pelo objetivo de se obter uma confissão. A prisão para delatar desfigura a delação.
A luta contra o cancro da corrupção não legitima que se recorra ao veneno do arbítrio e se passe por cima dos princípios constitucionais informativos do processo penal, como assinala o manifesto da OAB.
MIGUEL REALE JÚNIOR, 70, é advogado, escritor, professor titular de direito penal da Universidade de São Paulo. Foi ministro da Justiça (governo FHC)