Notas de leitura
Celso Akin/AgNews

Sírio Possenti: "Uma biografia de Luciana Gimenez sempre terá mais espaço que uma do Barão do Rio Branco"
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Estas notas resultam da leitura de uma das revistas semanais. Não têm conexão entre si. São uma reação tanto do fígado (isso eu sei) quanto do cérebro (espero).
1. Às vezes, sou muito literal. Por isso, sempre achei que ONG, sigla de Organização Não Governamental, não recebia dinheiro do governo. Literalmente, dinheiro do governo vai, ou deveria ir, para alguma organização (ou desorganização) governamental. Meu primeiro choque é antigo: ocorreu em 2002, quando Cafu, voltando da Ásia como campeão do mundo, anunciou que criaria uma ONG para ajudar criancinhas da "comunidade" em que nascera. Mas logo ele falava de tentar obter dinheiro de governos. Ora, sendo assim, as ONGs deveriam se chamar OGs, sem o N de "não". Ou, pelo menos, OnG, com o "n" menor, para disfarçar. E estão cada vez mais nas páginas policiais, aliás. A nota deriva, obviamente, do fato de que a dita revista dedica algumas páginas às notícias da semana sobre algumas tabelinhas entre o Ministério dos Esportes e certas ONGs.
2. A mesma revista comenta testes que mostrariam que o método fônico alfabetiza melhor que o construtivista. Minha posição é que tudo depende de como se define alfabetização e de como e onde se pratica. Se a questão for escrever e ler palavras como "batata" e "bola", sem dúvida. Para palavras como "hesitar", "êxito" ou "toxina", já não tenho nenhuma certeza. Ou mesmo para decidir quando se escreve "agente" ou "a gente". Além disso, quem lê ou escreve palavras? Para ler e entender piadas (frases, textos), qual dos métodos tem vantagem sobre o outro? Para compreender o que quer dizer um slogan como o da Petrobrás (O desafio é a nossa energia), por exemplo, de que adianta ser capaz de identificar os "fonemas"? Assim, a questão não é como se alfabetiza. É o que se faz com isso, ou seja, o que se lê e o que se escreve depois (e também durante). E faz pouca diferença se esse depois começa no segundo ou no terceiro ano da escola. Em uma semana de leitura e de escrita relevantes aprende-se muito mais do que em dois anos de aulas bobas.
3. A revista também noticia novo livro de Jô Soares (e os jornais que vi fazem o mesmo). Na Folha, saiu uma critica um tanto ácida, de um professor de literatura. Pelas passagens citadas, é um livro para se jogar no lixo. Mas um colunista do Sabático o trata como se fosse um clássico. Uma coisa é clara: vivemos num paiseco em que um livro vale pelo prestígio que seu autor tem em domínios que não o da escrita, da literatura. Para merecer uma resenha, salvo exceções (sempre existem, o que impede o desânimo total), o autor precisa ser people (artista ou astro de alguma coisa – Ronaldo ou Neymar ou Xuxa ou Hulk teriam precedência sobre qualquer Machado – ou ex-drogado, ex-amante de alguém famoso, ex-policial da pesada etc.) ou um estrangeiro. Ou tratar de alguém dessas hostes: uma biografia de Luciana Gimenez sempre terá mais espaço que uma do Barão do Rio Branco. Mas o que me espantou mesmo foi uma declaração de Jô Soares. Falando de "seu" detetive, um sujeito citado em "Tabacaria" (sim, ele teria lido Fernando Pessoa!), informa: "Vindo para o Brasil, pensei sobre o personagem: nada melhor que um inspetor para ter a lógica binária de que se todas (sic) as outras soluções são impossíveis, a mais improvável é a verdadeira". Lógica binária? Ainda bem que as matérias insistiram em destacar que o autor é humorista. De fato, a declaração está mais para Lei de Murphy que para lógica binária. Mas parece que é este o caminho do sucesso. Jô vai ser best-seller mais uma vez, e ocupar as prateleiras das livrarias La Selva…
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.
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