Uma aula bem didática, gratuita, para aqueles não que não receberam, de berço, educação. Aquela que não se compra em butique de luxo ou em livros de lombada de madeira para ostentar aos trouxas a cultura que não têm. Como de destrói uma democracia, um cronograma sem powerpoints. Golpes de Estado, desde sempre, são assaltos à democracia. Não por acaso Churchil inscreveu a frase que até hoje embala cidadãos democráticos e causa urticária nas mentes totalitárias: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.”
Nessas fugas noturnas do banditismo midiático brasileiro, encontrei, buscando por livros do período clássico greco-latino, um livro que me chamou atenção: “Come si abbatte una democrazia. Tecniche di colpo di Stato nell’Atene antica” da professora de história grega no departamento de História, Arqueologia e História da Arte na Faculdade de Letras e Filosofia de Milão, Cinzia Susanna Bearzot. Como se mata uma democracia. Ora, no Brasil atual sabemos muito bem como funciona. Com a Rede Globo escolhendo os julgadores mediante a distribuição de estatuetas, ditando a forma da persecução criminal e os ritos condenatórios.
Estava começando a ler o livro da filósofa Márcia Tiburi, “Como conversar com um fascista”. Como faço sempre, meu parâmetro de comparação remete aos clássicos gregos, Tucídides e Xenofonte.
A democracia ateniense, como chegou até nós, deve tributo maior a Péricles. Tucídides intuiu que a democracia funciona com líderes fortes. Os líderes fracos se tornam escada para oportunistas e, vejam só, aos demagogos. Um líder forte é moderado no trato porque tem exatamente por característica a intuição de líder. Ninguém é líder só por querer. Sem o dom, que pode ser temperado, aperfeiçoado com o tempo, não se chega a líder. Um líder sabe o que dizer mas principalmente quando dizer.
Ainda no período greco-latino, sobejam líderes de extração clássica, como Péricles, já citado, mas também o próprio Xenofonte, que conduziu o retorno dos mercenários gregos (10 mil) a serviço de Ciro, à Grécia, registrado no pai do filão literário retiradas de guerra, Anabase. Neste ramo da literatura, na feliz acepção do Italo Calvino (Por que ler os clássicos), está, para citar apenas um exemplo brasileiro, “Avante, Soldados: para trás”, do Dionísio da Silva. Júlio César, mas principalmente,Alexandre Magno. Por favor, não confundi-lo com Carlomagno, nem como Rei Arthur, muito menos com Magno Malta…
Michel Temer, por exemplo, não tem absolutamente nada de Péricles. A melhor definição do homem da Rede Globo no Planalto foi dada por Antonio Carlos Magalhães: “Não me impressiona sua pose de mordomo de filme de terror”. Não sabe escolher auxiliares (basta ver a lista de defenestrado em poucos meses), é tributário da pessoa mais nefasta que a política brasileira produziu. Como não tem intuição, troca Rei Arthur por Carlos Magno.
Já que tratamos de Tucídides, o pai da ciência das relações internacionais, como não lembrar que José Serra foi escolhido para relações exteriores pelo simples fato que a Odebrecht lhe confiou em lavanderias internacionais 23 milhões. Depósito no exterior é condição suficiente para torna-lo, jamais faze-lo, chanceler. Qualquer alienado mental sabe que o é BRICS. Jamais enxertaria na sigla uma Argentina. O Tarja Preta o faz com a desenvoltura de um hipopótamo numa loja de cristais. O uso destas personagens para dar o golpe foi um verdadeiro estupro coletivo na jovem democracia. Um bacanal na acepção moderna, não aquele evento religioso em que participavam as bacantes, devotas de Dionísio, Baco para os romanos, donde deriva o termo bacanal.
Um líder usa a força das ideias e o poder do convencimento. O charlatão se contenta e lhe basta a força da Rede Globo. O único meio de que dispõe. A força não se resume ao castigo físico, mas a condição de pactuar com quem detém o poder de persuasão. Hospedeiro e hóspede levam uma vida simbiótica, de mútuo aproveitamento. Pelo menos até descobrir que era um simples parasita.
Na Grécia do século V a.C., a saída de Péricles precipitou a aflorar as ambições pessoais de um grupo arrivista que usava o poder para aumentar os bens pessoais. A própria riqueza e a dos seus. Não foi muito diferente em outros períodos da história, seja romana ou mesmo no seio da própria Igreja. Até hoje há um sentimento de que o poder é inerente à apropriação do bem público pelo particular. Tanto é assim que as exceções não são aceitas. Um exemplo clássico está acontecendo em São Paulo. João Dória Jr é o que se chama o anti-estado, desde que seja nutrido pelo Estado. No RS temos o exemplo do Gerdau, que não produz um parafuso sem subsídio, sonegação, algum tipo de benefício fiscal. São os mesmos que usam e são usados pela mídia para condenar o público e santificarem as privadas.
E por aí se chega a mais recente vertente jurídica do direito romano made in Brasil: “Se não têm como provar o roubo, é por que soube roubar sem deixar provas.” Se não há o produto do roubo, não há roubou. Não na cabeça dos que julgam os outros tomando a si por parâmetro.
E aí chuto a bola levantada pela Marcia Tiburi, que também tributa a outra herança grega, a necessidade do diálogo. Platão escreveu suas principais obras como diálogos entre pessoas que faziam parte de sua convivência. No Brasil atual trocou o método socrático, talvez pela delação premiada. No Brasil, o diálogo é aquilo que o presidiário pode entregar de Lula para merecer liberdade. Se entregar produto diferente do esperado, não é diálogo. Esta inovação tem parâmetro nos avanços tecnológicos, onde a aquisição de determinado bem prescinde do diálogo. O cliente escolhe o produto a receber. Se entregar, é premiado. Seja por meio de sorteios em shopping centers, seja na deduragem legal. Os que se seguiram a Péricles primaram pelo privado, com a batida tão cara às ditaduras, dos Trinta Tiranos a Delfim Neto: deixar o bolo privado crescer para que os pobres entrem no sorteio dos farelos, como o tiquet leite.. Contei um pedaço desta história em 2002: “Que veículo da imprensa teria coragem de ligar o programa do "tíquete-leite", instituído pelo papai Sarney, e desincumbido por Nelson Proença, hoje no PPS gaúcho, à filha Roseana? Os motivos, só os lençóis maranhenses sabem.” Ao público, os restos que caem das mesas privadas. O direito é medida legal que legitima: dar a cada um o que é seu; ao rico, a riqueza; aos pobres, a pobreza.
O discurso público contraria a prática privada, como demonstraram as gravações de Sérgio Machado a respeito de Aécio Neves, José Sarney, Michel Temer, Romero Jucá e Eduardo CUnha. Aí, toma-se essa turma por parâmetro para julgar a outra turma, que é apeada exatamente para não compactuar com um programa recusado pelo escrutínio. Por que a regra privada que eles conhecem é aquela com as quais convivem. Nada mais fora do convívio do MPF que Lula carregando uma caixa de isopor com cerveja para a praia. Para eles, legal mesmo são os convescotes de Comandatuba, sob a batuta da LIDE… Neste caso, como mostram as sucessivas capas da Veja, o melhor solução, nada de diálogo, é a pura e simples eliminação dos párias.
Quer algo mais próximo das capas da Veja do que a imagem de Dilma para servir de tiro ao alvo? Se tudo isso já demonstra muito, não é tudo. O fascismo ainda encontrou tempo e dinheiro para distribuir adesivos com uma montagem mostrando Dilma de pernas abertas. Há quem pensa que passar em concurso público exima de saber a diferença entre Hegel e Engels. Até quem não passa em concurso público sabe montar powerpoint melhores.
Quem hoje, tendo lido Tucídides, teria dúvidas em comparar Aécio Neves a Alcibíades? A tragédia da empreitada de Siracusa, que acabará por levar seus destroços a Atenas, também jogará Alcibíades, como já demostrou Jacqueline de Romilly, nos braços do Império Persa. A plutocracia ateniense que se jogou no colo dos persas reencarnou no PSDB. FHC & Serra, desde sempre, tem essa propensão para tirar os sapatos e se ajoelhar aos EUA.
É de Tucídides o clássico insuperável sobre das relações internacionais: História da Guerra do Peloponeso. Escrito no calor dos acontecimentos, registrou e explicou o conflito, sopesando os papéis de Atenas e de Esparta, relacionando às consequências externas que o conflito punha em evidência. Seu mérito não reside apenas no registro factual, mas na análise que continua inspirando as relações internacionais. O discurso fúnebre de Péricles sobre os mortos do primeiro ano da Guerra do Peloponeso, um clássico da retórica, seria hoje uma afronta, já que Péricles enfatizava a importância da democracia. No Brasil atual, o golpe é classificado eufemisticamente por tropeço. 54 milhões de votos foram trocados por uma autêntica quadrilha de salteadores. Isso não foi tropeço em casca de banana. Foi um evento pensado e conduzido passo a passo pelos tributários do golpe.
Um discurso fúnebre é tudo o que nos resta da democracia. O Péricles de hoje é caçado como um cão sarnento. Por paradoxal que pareça, a sua inocência, a que ponto descemos na decência mas principalmente na lógica, é tomada como prova de sua culpa. Uma lógica que não faria feio ao mais canhestro dos nazi-fascistas que também tinha “a convicção que prescindia de provas” contra homossexuais, ciganos e judeus. É um cuspe ranhento, indecente, na nossa cara. Na cara de cada um que um dia cursou Direito e estudou Lógica.
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