Dois relatos sobre Edna e Belchior
Postado por Juremir em 12 de janeiro de 2013 – Cotidiano
Juremir, meu caro, excelente texto!
Quando Belchior e Edna “apareceram” em Porto Alegre, acho que um mês e pouco atrás, fiz alguns comentários no meu Facebook sobre a insólita situação do ídolo. Uma das coisas que disse é que ele não estava procurando “emprego”. Se falta de dinheiro fosse o caso, na hora ele teria portas abertas em teatros e casas noturnas de Porto Alegre.
O que posso acrescentar, para tua interpretação, é que ele e Edna estão juntos desde 2006. De lá para cá, ele deixou de ter celular, de ter endereço, de ter página na internet. Pelo que sei, não visitou mais os filhos e, pior, a mãe morreu em Fortaleza e ele não apareceu. Tudo muito bizarro, como disseste. Posso dizer que estivesse bem próximo do Belchior em certa época (fins dos anos 70/início dos 80). Ele esteve duas vezes em minha casa, passamos a noite conversando e bebendo vinho. Sua última apresentação em Porto Alegre acho que foi promovida por mim, no Santander Cultural, lá por 2005 (também não sei precisar a data e neste momento não estou a fim de procurar isso nos meus arquivos), um show do projeto “Ensaio Aberto”, em que eu entrevistava o artista e ele ia cantando. Ele estava perfeitamente normal. Por que não teria me procurado nem antes nem agora?
Agora, a cada “aparecimento” dele com essa senhora Edna, a situação parece que vai se agravando e deteriorando do ponto-de-vista da sanidade. Inicialmente (quando a primeira notícia do sumiço veio à tona pela Globo), imaginei que ele estaria incógnito no Uruguai em busca de “novas emoções” para seu trabalho de compositor. Muitos artistas fazem isso, mergulham no desconhecido para lá buscar inspiração e histórias. Mas quando reapareceu em Porto Alegre, com estranhíssimas histórias passadas no interior uruguaio, com contas de hotel por pagar e fugas por portas dos fundos, já percebi que o caso era outro. Como, segundo tua matéria, ele pode se mostrar calmo, atencioso, receptivo, se no momento seguinte Edna o puxa para o lado da paranoia e da esquizofrenia? Por que ele simplesmente se deixa levar, sem esboçar reação? Independente de isso tudo ser desvendado, sem dúvida que dá uma história e tanto, uma novela de suspense em que o leitor atravessará o livro sem saber se é ficção ou realidade.
Abração, te leio sempre
Juarez Fonseca
*
Juremir,
Vou te contar a história de um final de semana verdadeiramente inesquecível em Colonia del Sacramento.
Te peço que não publiques meu nome, porque esse fato rendeu muito, à época. É uma cidade grande sob certos aspectos, mas muito pequeno para esse tipo de coisa, e não quero mais exposição a esse respeito.
No dia dos namorados de 2009 fui com minha ex-namorada a Colonia del Sacramento. Coincidentemente, meus pais combinaram com um casal de amigos de também irem para lá. Assim, passávamos o dia separados, nós dos outros dois casais, e às noites encontrávamos para jantar.
Em um dos dias, quando encontramos, por acaso, na beira do rio, meus pais, eles nos contaram que tinham ido conhecer o Sheraton de Colonia, que fica em um campo de golfe, e reconheceram o Belchior no lobby. Tão logo ele viu ter sido reconhecido, chegou para conversar, e – disseram – foram umas duas horas extremamente agradáveis, com histórias engraçadas, envolvendo grandes nomes da nossa música popular.
A Edna estava junto e se apresentou como artista plástica, segundo ela “curadora de arte”, sem mencionar de qual instituição.
Quando se despediram, meus pais e os amigos disseram que tinham uma reserva em um restaurante muito pequeno, do filho do Jorge Paez Villaró (irmão menos famoso do Carlos, de Punta del Este), que é uma verdadeira galeria de arte em homenagem ao pai, e talvez eles tivessem interesse.
Disseram que não sabiam se poderiam, porque estavam em Colonia de passagem. Segundo eles, haviam estado em Punta del Este e iriam a Santiago, onde Belchior participaria de um festival, mas que em Colonia estariam fazendo uma sessão de fotos promocionais. Então dependeriam da agenda da “produção”.
Ao chegar ao restaurante, em menos de 5 minutos, chegaram Belchior e Edna, como se “por acaso”, com a mesma roupa que estavam de dia.
Foi a primeira vez que tive contato com eles. Já havia algumas horas que meus pais e o outro casal contavam as histórias deles, e a excitação por conhecê-lo era grande.
Chegaram e como era dia 12 de junho, fizeram uma homenagem aos namorados. Eles não nos conheciam, só meus pais e os amigos, de modo que ele levou um CD, embalado naquele plástico de proteção – evidentemente recém comprado – para o casal de amigos dos meus pais. Era um CD de poemas de Neruda que, segundo ele, havia ganho da família do Neruda. Para meus pais, ele trouxe uma gravura do Calazans Neto, artista baiano que ficou conhecido por ilustrar as obras de Jorge Amado. Segundo Edna, eles haviam arrematado uma coleção de gravuras do Calazans Neto, em um leilão da família do Jorge Amado, e ela estaria, nessa viagem, levando à Argentina para uma interessada.
A primeira situação estranha foi aqui. Minha mãe, pela tarde, traiu-se pela confiança e disse que tem uma tia, em Porto Alegre que tem uma grande coleção particular de arte. Edna ficou muito interessada, e à noite levou a gravura para que entregássemos para a tia, de quem pediu, inclusive o endereço, porque “seria muito bom se essa coleção ficasse no Brasil”.
No jantar, estávamos em uma mesa de 8. Eles dominaram as conversas. Belchior fez alusão a grandes penalistas, quando soube que eu era advogado criminalista. Disse que tinha origem judaica, quando soube que éramos judeus. Sempre essas alusões eram tomadas por grandes histórias, quase sempre muito engraçadas, por parte dele, ou por análises extremamente profundas (e, por vezes, cansativa) por parte dela. A título de exemplo, quando soube que éramos judeus, fez um libelo em defesa de Israel, no conflito árabe-israelense.
No dia seguinte, íamos todos para Montevideo. Leia-se, todos, os 3 casais.
No final da janta, em um momento de silêncio, Edna virou-se para ele e disse que “tinham que resolver a situação se quisessem ir a Montevideo conosco”.
Olhei para o meu pai e sentimos que “algo vinha”.
Relatou – ela, sempre ela – que a “produção” havia entrado no quarto deles para levar alguns equipamentos antes e levou a bolsa de pertences pessoais deles, com documentos e cartões.
Aí ela virou para nós todos e perguntou se não nos importávamos de, em vez de pagar em dinheiro, pagar no cartão, e dar o dinheiro para eles, mediante um cheque do Banco do Brasil.
Ficou um clima claramente pesado na mesa.
Meu pai argumentou que tínhamos pouco dinheiro em espécie, usávamos quase que só cartão, e que o restaurante não aceitava cartão. Paralelo a isto, o amigo que estava junto levantou-se e pagou a conta, de todos, inclusive deles e deixou por isso mesmo.
Digamos que pagar a janta deles foi um “couvert artístico” para uma janta extremamente agradável, que culminou com uma tentativa de estelionato.
Na saída, despedimo-nos e ficamos mais três horas no bar do hotel conversando sobre a peculiaridade da noite.
Cerca de uns 2 meses depois, apareceu no Fantástico a notícia do “sumiço” de Belchior.
Enviei um email à globo para dizer que havíamos visto ele em Colonia.
Quiseram gravar uma matéria, e optei por não falar essa parte negativa deles, porque não sabia exatamente em que contexto estava inserido o sumiço dele.
Naturalmente deu uma repercussão tremenda. Tomado por uma curiosidade, mantive contato com um promotor de justiça, motoqueiro, que apareceu na reportagem, que também o encontrou, e também contou uma história água com açúcar.
Não contei a ele nada disto, e ele disse que estavam em um bar e o Belchior chegou, ficou a noite toda conversando e no outro dia foi no hotel deles, pediu 300 dólares emprestado e deu um cheque do Banco do Brasil, que ele sequer tentou trocar. Segundo ele, foi o “autógrafo mais caro” que ele já pegou.
Em dezembro de 2009 ou 2010 (agora não sei precisar exatamente), estávamos em Rivera, fazendo compras de Natal e vimos ele e Edna escorados, depois do almoço, no Consulado do Brasil, em uma transversal da Rua Sarandi. Quando voltamos para fotografar, uns 5 minutos depois, já que ninguém acreditaria, eles haviam ido embora, ou entrado no Consulado. Acreditamos que eles nos reconheceram (até porque saiu no Fantástico).
Essa é a história.
Te peço de novo que não publiques nem meu nome nem a cidade, porque isso já me incomodou bastante.
E te prepara que é possível que venha “mordida”.
Um abraço,
Três dias escondendo Belchior em Porto Alegre
Postado por Juremir em 11 de janeiro de 2013 – Cotidiano
Vida de jornalista é bizarra. Há três dias, na Rádio Guaíba, fui procurado por Edna, mulher do cantor Belchior. Ela me esperava sentadinha na recepção, com seu jeito simples e um ar melancólico. Nem acreditei. Edna é artista plástica, diz-se intuitiva, ama o marido e está preocupada com ele. Muito preocupada. Sentem-se perseguidos. Contou que eles têm recebido ameaças. Reclama que uma reportagem da Rede Globo, de 2009, foi um ataque terrível ao cantor. Na matéria, Belchior foi dado como desaparecido, mas a emissora saberia bem não ser assim visto que ele fora entrevistado por Jô Soares poucos meses antes.
Qual seria o motivo da perseguição?
Aí é que se complica. Edna quer montar uma estratégia para proteger o marido antes de ele falar tudo o que suspostamente sabe. O susto parece grande. Contou-me que haviam ficado até às três da manhã na Defensoria Pública. Disse que estavam hospedados num pequeno hotel do centro de Porto Alegre, por indicação doe um juiz. Edna queria tirar o mais urgentemente possível Belchior do hotel e levá-lo para um lugar seguro e discreto. Pedia a minha ajuda. Queria que fôssemos num carro sem identificação de empresa jornalística. Comecei a duvidar. Será que ela era mulher de Belchior mesmo? Será que desejava me atrair para algum lugar e me sequestrar? Sou um velho jornalista alquebrado e cheios de dúvidas. Ela me parecia, no entanto, tão frágil, tão perdida, apavorada com as perseguiçõesl.
E confiava em mim.
Tinham lido minha coluna sobre Belchior. Resolvi fazer algo.
O repórter Jimmy Azevedo, da Rádio Guaíba, foi ao hotel ver se era mesmo Belchior. Era. Jimmy e o seu colega Gabriel Jacobsen passaram a acompanhar o cantor, que saiu com eles do Hotel Ponte de Pedra, na Fernando Machado, num carro da Defensoria Pública, protegido por outro, como num filme policial. Depois de mais quatro horas com defensores públicos, Belchior e Edna foram se abrigar na casa de Camila, amiga de Gabriel, numa rua tranquila do Bom Fim. À noite, Cláudia e eu fomos lá conhecer nosso ídolo. Encontramos um homem gentil, inteligente, calmo e culto, que nos falou bastante sobre sua paixão pelo escritor gaúcho Cyro Martins. Edna mostrou-nos vídeos com músicas do marido no YouTube. Entrevista? Não. O plano é relançar a carreira de Belchior neste ano, em grande estilo, com mídia nacional. Sem nem sequer um celular nos bolsos, Belchior e Edna garantem não estar falidos e esperam um retorno triunfante. Ficamos perplexos. O que estará realmente acontecendo com um artista tão talentoso e admirado?
Belchior tornou-se um mistério. Diz não estar fugindo nem se escondendo. Teria se retirado para compor. Mais de vinte novas canções prontas provarão isso, indica. As aparências, cantou ele, um dia, não enganam mais. Algo desandou na sua vida? O quê? Por quê? Eles querem ser recebidos por alguém da direção da TV Record. Não querem ir ao prédio histórico do Correio do Povo por ser no centro da cidade. Encontrar alguém da televisão é para eles uma meta irrevogável. Só da tevê. Faço o contato. À tarde, eles vão ao morro Santa Teresa e são recebidos por Vânia Lain, gerente de jornalismo da Record-RS. Não abrem o jogo. Qual é o jogo? Denúncias com provas e um relançamento em grande estilo da carreira de Belchior. Voltamos a nos encontrar. Chegamos a caminhar juntos no Bom Fim quase ao anoitecer. Na hora do entrar no edifício, Edna e Belchior recuam, desviam, refugam, receiam alguma coisa. Ela fica muito nervosa. Sentem-se vigiados. Jimmy, Gabriel e eu atravessamos a rua. Edna e Belchior não o fazem. De onde estão, fazem sinal para que a porta seja aberta. Só depois que Gabriel gira a chave e empurra a porta é que eles atravessam quase correndo e entram no prédio.
Temem que o local seja identificado.
Temos uma conversa difícil. Avisamos que, mesmo sem entrevista oficial, vamos noticiar a estada deles em Porto Alegre. Edna fica indignada. Alega que estou eticamente comprometido com eles. Argumentamos. Ela adota um discurso estranho, em tom de ameaça ou de pressão.
– Se vocês vão dar matéria, nós temos de ligar agora mesmo para Brasília. Temos muitos amigos importantes lá. Tomaremos nossas providências depois de ler o que for publicado.
Tentamos saber o que os assusta tanto. Não conseguimos. Já tínhamos pedido para ver as provas sobre as tais denúncias de que falam. Nada feito. Faz calor.
Belchior tenta falar. A voz de Edna encobre a dele quase sempre.
– Meus Deus, não consigo falar – ele diz.
Interfiro pedindo a ela que o deixe falar.
– Vê lá o que você vai falar, hein? – ela diz.
– Vocês não precisam de mim para nada. Não precisam da minha autorização para publicar, mas eu preferiria que fosse diferente. Quero falar quando for de um trabalho, dentro de algum maior, não apenas mais uma entrevista.
Gabriel argumenta que somos apenas jornalistas e queremos noticiar a presença deles em Porto Alegre. Belchior pergunta o que sairá, como sairá, algo assim, num esforço para demonstrar que o melhor é esperar.
– Vai ser assim: Belchior está em Porto Alegre e diz ter graves denúncias a fazer – tento resumir.
– Não! É isso que não pode sair – exalta-se Edna.
Belchior faz coro.
– Não. Seria terrível.
Jimmy tenta acalmá-los.
Aviso que tenho de voltar para casa. Belchior diz:
– Vocês não precisam de mim para fazer o mal.
– Mas precisam para fazer o bem – emenda Edna.
Pergunto a Gabriel quanto tempo Camila ainda poderá dar-lhes guarida no seu apartamento.
A irmã, que mora com ela, foi dormir noutro lugar para ceder-lhes o quarto onde se retrancam em busca de segurança.
– Mais uma noite – diz Gabriel.
Saio para a rua. Penso em Belchior. Sou fã dele. As suas composições tocam o meu coração. Minutos antes, eu lhe dizia da minha paixão por seu trabalho e de outros cantores da minha predileção, aqueles que sempre ouço.
– Tu e Charles Trenet – digo.
– “La mèr” – ele responde, com os olhos brilhando.
– “Douce France”, “Ménilmontant” – acrescento.
Ele sorri. Eu deveria ter completado:
– “Paralelas”, “Mucuripe”, “Como nossos pais”…
A voz de Belchior parece intacta. Se cantar, vai tirar o pé da lama. Sugiro show na Arena. Ou, como ele já morou no Bom Fim, uma apresentação no Araújo Vianna. Espero publicar aqui, em seguida, os relatos de Jimmy Azevedo e Gabriel Jacobsen, que mergulharam nesta estranha aventura com Belchior com a entrega dos verdadeiros repórteres, aqueles que amam as histórias humanas com seus dramas, zonas de sombra e complexidades.
A foto que ilustra este texto tem apenas a função de legitimar o relato.
Termino com uma reflexão triste:
– Tudo que eu queria era ajudar Belchior. Eu ficaria feliz em vê-lo brilhar novamente. Confesso minha impotência. Não consegui compreender o que se passa com ele. Sei que Edna e ele vão me odiar por eu ter publicado este texto. Sinto-me como aquele jornalista do filme “A montanha dos sete abutres”, clássico do sensacionalismo sem limites. Ao mesmo tempo, algo me diz que devo publicar, que é jornalismo, que tenho uma obrigação de informar. Sentirei culpa por isso. Mas esta é a minha única possibilidade de tentar ainda ajudá-lo, chamando a atenção para a estranha situação em que se encontra.
Cantarolo mentalmente contemplando os telhados do Bom Fim:
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva
Do meu coração…
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais…
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais…
Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando…
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem…
Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando vil metal…
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo,
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais…
Foto: Ana Cláudia da Silva Rodrigues
Duas noites com Antônio e Belchior no Bom Fim
Postado por Juremir em 11 de janeiro de 2013 – Cotidiano
Por Gabriel Jacobsen e Jimmy Azevedo
Entramos na recepção de um hotel de poucas estrelas, no Centro de Porto Alegre, e perguntamos por Edna e seu marido. Três minutos depois, uma mulher exausta, simples e bem articulada começa a nos narrar a epopeia corajosa que vive há três com o companheiro. São noites mal dormidas, viagens repentinas, impossibilidade de voltar para casa e de manter contato com os parentes. Conforme evolui o relato da mulher, aumentam o mistério e a tensão, que parecem nunca se concluir. Cada hóspede que passa perto de nós é um agente infiltrado em potencial, buscando informações para uma emissora de tv ou uma foto flagrante do casal tomando café:
– “Mandaram jornalistas se hospedar no mesmo andar da gente”, supõe, enquanto seus olhos procuram os inimigos que, para nós dois, são invisíveis.
Ao menos a câmera de vigilância do hotel não nos filma no canto onde conversamos, tranquiliza-nos. “Esse cara do hotel não tem jeito de que sabe fazer leitura labial”, diz ela. Ouvimos muito e perguntamos pouco nestes 10 ou 15 minutos que antecedem a chegada de dois carros enviados pela Defensoria Pública gaúcha.
Para nossa própria segurança, alguns detalhes do que se passou com o casal e do que está sendo articulado por ambos não nos serão revelados. Aceitamos. Mas existe um dossiê com incontáveis cópias salvas em locais estratégicos, nos revela Edna, antes de desaparecer hotel adentro para buscar as malas e seu marido. “Estamos exaustos, não aguentamos mais fugir”.
Com todos prontos para a fuga rápida, aparece Belchior, de bigode meio branco, meio preto. Entramos todos no mesmo carro, enquanto o outro veículo parte antes, despistando os possíveis paparazzi. Atento e carinhoso, pergunta nossos nomes, nossa origem, e daí para diante nos trata como se nos conhecesse de longa data. No breve caminho, Edna comemora a ausência de qualquer veículo nos seguindo.
Belchior nos conta que morou em Porto Alegre e lembra de uma entrevista “maravilhosa” concedida a Caio Fernando Abreu para o Correio do Povo. Encarnado de Porto Alegre, cita figuras como João Gilberto, que morou na Capital no inicio da carreira, e o mais famoso poeta gaúcho. “Mario Quintana morou no hotel do Falcão”, lembra.
Da mesma forma que fizemos ao sair do hotel, primeiro vão as malas, depois Edna e nós e, por fim, Belchior é resgatado do carro. Defensoria Pública adentro, Belchior flutua sorridente, cumprimentando afável todos os funcionários. Ingressamos, quase com refugiados, com toda a bagagem do casal: uma mala pequena, uma pasta entupida de documentos e duas sacolas de papel com poucas roupas.
Durante seis horas, nos distraímos na sala de espera do sexto andar com cafés, copos d’água, um quarto de pacote de polvilho, estagiárias belas e novas demais nos sorrindo como se fossemos importantes e um poema de Manuel Bandeira chamado Isadora. De tanto em tanto, Edna sai da reunião para conferir se ainda estamos ali. Estamos.
Terminada a reunião, pouco ou nada nos relatam, ainda que esta seja o segundo encontro com aqueles advogados em dois dias. Também fica implícito que uma nova reunião será necessária e que pretendem continuar em Porto Alegre. Reticentes de se esconder, ou ao menos tentar se esconder, em outro hotel da Capital, nos pedem sugestões de hospedagens mais discretas. Encontramos uma amiga disposta a oferecer alguns dias de casa, comida e roupa lavada.
Quando Belchior se torna Antônio
No mesmo táxi fretado, cuja aparência do motorista se assemelha, para Belchior, a de um personagem d’O Poderoso Chefão, partimos do Centro ao Bom Fim. Nada lhe é estranho no caminho, pois morou por alguns meses no bairro em meados da década de 70, antes do aclamado disco Alucinação (1976). “A gravadora mandou o Belchior para cá como forma de preparar a estratégia de marketing, corte de cabelo, roupa…”, explica Edna.
Ao contrário da companheira, Belchior conversa conosco sobre música, músicos, poesia e conta histórias da MPB, sempre sereno. “Radamés Gnatalli (músico porto-alegrense) fez o arranjo musical para uma gravação da musica Baião, de Luiz Gonzaga, gravada por mim para uma novela, eu acho”, diz Belchior, enquanto assiste ao trânsito em transe da lenta avenida Venâncio Aires no fim da tarde. Transe favorecido pelo ar-condicionado e que Edna irrompe propondo uma combinação: que por questões de segurança, ainda desconhecidas para nós, comecemos a tratar Belchior pelo primeiro nome: Antônio.
– Só se o Antônio concordar… – um de nós sugere, transformando a tensão em risadas.
Chegamos a uma dessas ruas do Bom Fim, onde o “Ritual de Edna” é repetido, mantendo o cantor, poeta, gênio da MPB, a salvo do mundo até que sua companheira termine a inspeção minuciosa da rua (vazia). No apartamento da prestativa estudante, o melhor quarto é oferecido aos hóspedes, junto com uma cópia da chave. Antônio reviverá o Bom Fim por três dias e três noites.
O jornalista Juremir Machado, colega de Rádio Guaíba, que intermediou nosso contato com Belchior, chega pouco depois das 20h. Cumprimentos, elogios e breves referências até chegarmos às perguntas objetivas. Por que estão aqui? De onde vieram? Pra onde vão? As respostas são vagas no que se refere a tempo e espaço. No entanto, ressaltam o descontentamento com um veículo de comunicação nacional e a possibilidade de Antônio voltar aos palcos ainda no primeiro semestre de 2013. O cancioneiro cearense, natural de Sobral, já teria composições inéditas suficientes para três álbuns, de acordo com Edna.
– Mais de 30 músicas?, perguntamos ao casal
– Não tanto, umas vinte e poucas, revela o cantor.
Papo se estende e Edna começa a nos mostrar, na TV da sala, vídeos no YouTube. Assistimos, em sequência, a quatro clipes de Belchior. Sua música, naquelas circunstâncias, chapa a todos e o ídolo de várias gerações larga o corpo no sofá como se voltasse se quisesse transpassar, carpete e concreto para alcançar, na contramão dos dias, um passado de inevitável superexposição na mídia, numa expressão de doce revival. Depois da música povoar o apartamento, alguém sugere: prefiro te ouvir ao vivo, pega o violão! Um de nós lhe oferece um dos violões estrategicamente repousados no canto da sala, mas Antônio se nega, como se o instrumento fosse uma desconhecida com quem não se quer puxar papo numa ponte aérea.
Antes disso, até houve uma tentativa de quebrar o silêncio artístico quando ele comentou que havia gravado a música Paixão, de Kleiton e Kledir, que prontamente teve dois acordes humildemente sussurrados no violão por um de nós. Somente ali Antônio desencarnou de Belchior e se permitiu cantar a segunda frase da música: “…e o teu jeito de fazer amor”. Porque Antônio, não Belchior, prefere somente conversar sobre a vida – não a sua: literatura, cinema, comportamento humano e reflexões densas ou improváveis. Nada foi perguntado sobre seu suposto desaparecimento e sobre dívidas mencionadas em reportagens sensacionalistas por veículos do centro do país. Nem pretendíamos. Não porque o silêncio quebraria uma confiança até então construída, mas porque nossa intenção era materializar Belchior enquanto pessoa e artista para milhões de fãs sedentos de boas notícias suas: um novo show, um disco…Aliás, Belchior, Antônio para nós, não quis nos conceder uma entrevista formal. “Quero algo grandioso, não fragmentado”, repetiu.
Este relato é como um diário de bordo, porém beirando um conto fantástico – nós meio imersos, meio abduzidos por um universo estranho, sem sincronia entre tempo e espaço. Não nos despedimos dele. Apenas retomou alguma rua do Bonfim, alguma rua do Brasil ou das bandas orientais, surgindo para alguns e desaparecendo para outros.
Antônio quer ser gente
Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ex-estudante de Medicina da Universidade Federal do Ceará, considera que há muita confusão entre o que é um poeta romântico e um boêmio.
Drogas: “Nunca usei maconha, só fumei cachimbo e charuto”, fala enquanto tomamos o único vinho da noite.
Política: considera que a Lei da Ficha Limpa deveria ser chamada de Lei da Ficha Suja.
Política 2: Faz piada quando os dois repórteres comentam sobre as eleições complementares de Novo Hamburgo: “O único Zimmermann que eu conheço é o Bob Dylan”.
Passado: “Em um show, lá em Sobral (CE), Waldick Soriano não deixou os estudantes pagarem meia entrada. Ele dizia, se pagar só meia, vai ver só o começo e o final do show, ou seja, a metade. Depois, já no hotel, quando os estudantes protestavam ainda pela meia entrada, ele tirou um revólver pra fora e atirou próximo aos estudantes”.
Educação: “Eu estudo todos os dias”.
Gosto: “Eu acho a música do Rio Grande do Sul melhor que a da Bahia”.
Foram em ocasiões como esta, que Belchior conseguiu interagir sem que houvesse qualquer interferência do mundo externo, quase a ponto de cantarolar ou empunhar o violão ou mesmo conceder uma entrevista completa para além da convivência com dois repórteres. Como nada acima se concretizou, no dia seguinte pegamos aqueles dois violões e, enquanto Belchior repousava com a companheira, tocamos canções. Lentamente, após meia dúzia de músicas, Belchior ressurge e observa o nosso amadorismo ao empunharmos músicas de compositores gaúchos e nordestinos. Não se comoveu, tampouco perdeu o sorriso.
Foto: Camila Genz
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